Este é o conteúdo do antigo Blog Fabio Salvador, do ano de 2004 até 2015.
      Muitos dos antigos dados foram perdidos, mas uma parte dos artigos publicados no velho site está aqui, resgatada, para consulta.
      Este é um site MEMORIAL, ele não receberá novos posts e não está aberto a novos comentários.
      Acessar
      o site
      ATUAL
      CATEGORIAS
    • Polí­tica e Reportagens
    • Reflexões e Polêmicas pessoais
    • A vida na CEEE
    • Cinema
    • Videogames
    • Carros
    • Comunicação
    • Informática
    • Entretenimento e Celebridades
    • Curiosidades
    • Falecimentos
    • Livros
    • Charges e Quadrinhos
    • 06/03/2014 - Cinema
      O Homem da Capa Preta (1986)

      Um ótimo filme com um protagonista interessante, que já seria um ótimo roteiro de ficção. Mas, o mais impressionante é que é tudo real: é a vida do anti-herói Tenório Cavalcanti. Deputado, populista, pistoleiro... e macho!

      O Homem da Capa Preta!
      Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, o herói/vilão/sei-lá do filme (e da vida real) nasceu no começo do século XX no Acre, numa família pobre. Eles se mudam para o Rio de Janeiro. Mas não para a Cidade Maravilhosa, claro – e sim para Duque de Caxias, distrito pobre, poeirento e cheio de botecos e inferninhos, num canto sujo da cidade de Nova Iguaçu.

       

      Lá, Tenório cresce e se mistura na malandragem, no meio daquela miséria toda. E é com a força desse povão aí que, em 1936, se elege vereador. Como alegria de pobre dura pouco, em 1937 vem o Estado Novo e todos os mandatos legislativos são extintos.

       

      Mas o cara era duro na queda. E volta a subir, como deputado estadual em 1940. Em 1950, se elege Federal. Nesse tempo todo, recusa-se a virar um deputado engomadinho, continua maloqueiro, marginal, e circulando pelos botecos da comunidade que é sua base eleitoral. Ele consegue inúmeras melhorias para essas comunidades, ignoradas pelos políticos tradicionais.

       

      Com a Constituição numa mão e uma metralhadora na outra, diz "agora o povo tem um advogado e um defensor". Tipo um Lampião suburbano, sabe?

       

      E ele é interpretado pelo José Wilker, o que me fez estranhar muito que não tenha, em momento algum, mandado sua esposa Dona Nenê (não, não é esse o nome dela, mas como é interpretada pela Marieta Severo, passará a ser), que "deite, pois vou lhe usar".

       

      Dona Nenê passa o filme todo chorando. Pudera. O marido é louco, arrisca vida (dele, dela, e dos filhos) o tempo todo, e é mais grosso que dedo destroncado. Perto dele, Gildo de Freitas pareceria o Príncipe da Dinamarca.

       

      José Wilker é um baita ator. Marieta Severo é uma baita atriz. Aliás, o elenco deste filme é fantástico. Até o Mendonça (Tonico Pereira) está nele. E já fazia papel de tarado, malandro e bebum.

       

      Mas prossigamos.

       

      A figura do tal Tenório é uma coisa engraçada em si: ele usa um chapéu comum na época, e uma capa preta. Parece até o pai do Zé do Caixão.

       

      E não só isso: nunca saía sem levar consigo Lurdinha, sua submetralhadora MP-40 alemã.

       

      Andava por aí cercado de capangas, e só se sentia a vontade andando nas ruas das favelas de sua região, onde os bebuns e meliantes o conheciam bem e o consideravam parte de suas vidas.

       

      Tenório era bom de tiro e bom de briga. Tentam matá-lo? Ele fuzila! Tentam intimidá-lo? Ele quebra a cara! Tentam invadir a casa dele? Bom. Isso é outro caso.

       

      Na melhor parte do filme, o PTB, partido que o maluco vive atacando, elege o prefeito, o governador e o presidente (Getúlio Vargas, voltando para seu derradeiro mandato). E com todo esse poder, nomeiam um novo delegado para a região, o implacável Lima Maragato. Um velhote com cara de vampiro, que tenta acabar com Cavalcanti cercando seus amigos e apoiadores.

       

      Cavalcanti e Maragato reúnem-se para conversar, mas o delegado joga o chapéu preto do deputado no chão. Quando Tenório se abaixa para pegar, os fotógrafos do PIG da época registram a imagem: o Homem da Capa Preta, ajoelhado diante do xerife nomeado por seus inimigos. A publicação disso aí detona uma guerra e um monte de figurantes morrem.

       

      Por alguma razão que não sei, Tenório a partir de então abandona sua indumentária Zé-do-Caixonesca.

       

      Antes de prosseguirmos, falarei do momento momentoso: o cerco à casa de Cavalcanti.

       

      Eu não lembro bem em que parte aconteceu, mas Tenório é acusado de metralhar um delegado (tenho certeza de que isso foi antes da nomeação de Maragato), e o Exército cerca a casa dele. O deputado está armado, com seus amigos, pronto para resistir. Mas resolve abrir negociações: um figurão é enviado para dentro da casa, para conversar com ele. Só que aí, Tenório sequestra o tal figurão, e o faz refém. O banzé só se desfaz porque ninguém menos que Osvaldo Aranha (o ex-ministro, não a avenida), aparece para impedir o tiroteio.

       

      Agora, voltemos ao momento pós-foto

       

      Seja como for. Tenório, humilhado pela tal foto, começa a decair, e em 1960, abandona seu partido (a UDN) para tentar o governo da Guanabara. Se ferra, porque Carlos Lacerda (atualmente, lembrado como DEUS DO PIG) ganha a eleição.

       

      Em plena decadência, Tenório resolve se reinventar, e vira Janguista. Péssima ideia: em 1964, vem o golpe. E aí vamos para o final do filme.

       

      Mas primeiro eu tenho que dizer uma coisa.

       

      Lá pelo começo da atuação como deputado federal, Tenório Cavalcanti criou um jornal chamado "A Luta Popular". Chamou um jornalista amigo dele para fazer, mas o cara queria fazer um jornal sério. Cavalcanti, que na certa deve ter algum parentesco ao menos espiritual comigo, manda mudar tudo, botar uma manchete bombástica, e fazer umas matérias sensacionalistas. Esse jornal vai ter importância no fim.

       

      Momento marcante para quem entende: Guilherme Karan interpretando o jornalista Flávio Cavalcanti, que tenta ludibriar Tenório e termina jogado numa piscina. (o tal Flávio foi uma LENDA, e antes de morrer, sentindo-se mal, ainda CHAMOU O COMERCIAL, imaginem vocês).

       

      Voltemos ao fim.

       

      O golpe de 64. Tenório deixa de lado a indumentária sóbria que vinha usando, pega sua metralhadora Lurdinha, e veste a capa preta. Usando passagens secretas e o escambau, ajuda seu amigo jornalista a fugir pela Embaixada da Suíça. O outro braço direito dele, um operário-capanga, resolve ficar para fazer a resistência ao regime.

       

      Tenório atira para o alto, e diz a melhor fala da história dos filmes sobre política: "Eu não sou fascista! Eu não sou comunista! Eu não sou covarde! Eu sou Tenório Cavalcanti, e sou macho!"

       

      Simples. Lindo. Populista, popular, sem ideologia ou teorizações: um homem do povão que ascendeu brandindo as causas do povão sem a preocupação com um discurso mais global. Nisso seu estilo cruza-se com o de outro líder que ascendeu na mesma época: Jânio Quadros. Isso renderia uma imensa análise, mas não estou com saco. Estamos no fim do filme.

       

      Sobe o letreiro. E aí, descobrimos que Cavalcanti SOBREVIVEU ao confronto com as forças que estavam tomando o país. Só que "morreu" politicamente, e morreu só nos anos 1980, na comunidade pobre de onde veio.

       

      O cara morreu um ano depois de sair o filme.

       

      UMAS ANÁLISES

      Esse filme não é perfeitamente fiel à vida do deputado Tenório Cavalcanti. É algo romanceado, porque na verdade, o deputado real fez pouca coisa efetiva pelo povão. Era muito mais um inspirador e um enrolão. Mas o filme foi feito nos anos 1980, logo após a abertura e derrocada do Regime Militar. Havia uma onda de resgate das lideranças populistas pré-64. E quase todo cineasta, historiador ou jornalista sente uma certa inclinação a encontrar nesses tipos populares uma fábula de Robin Hood, ou de Zorro.

       

      Mas não é só isso que transparece na historieta: Tenório, mesmo com mandato e usando fatiota, é um homem do povo que fala o que pensa e sai na porrada se preciso. Seus inimigos são engravatados impessoais que conseguem mover os pauzinhos e fazer o que querem sem enfrentamento direto. É uma alegoria do político pré-64, "populista", que também é o do pós-84, cujo poder vem do povo, contra o político de gabinete, típico do regime militar, o governador ou prefeito nomeado, o senador biônico.

       

      É um filme que fala muito sobre o Brasil que nascia na época e sobre o que acabara de morrer.

       

      Ah! Tem outra coisa. Em 1986, os cineastas ainda se preocupavam com coisas importantes, ao invés de socar efeitos especiais feito loucos. Há muito simbolismo aqui. Tenório só usa roupa preta e seus inimigos, branco. Quando ele para de se vestir igual ao Drácula, passa a usar branco e seus inimigos, preto. Afonso Arinos, seu maior inimigo, é dos poucos que são desenvolvidos e trabalhados no filme – o resto são só "malvados genéricos". E eu já disse que José Wilker é um mestre? Já? Repito então.

       

      Mas nada disso importa. O que importa é o seguinte...

       

      É um baita filme. Vale como filme de drama, aventura, violência gratuita, não sei. Eu só fui descobrir que era real depois de assisti-lo. E aí, me pareceu mais incrível ainda.