Hoje vamos falar de um filme mais novo do que a média de idade das coisas que eu comento por aqui. "A pele que habito" é um filme denso, forte, feito pelo sempre esquisitão Pedro Almodovar. E foi lançado em 2011. Tem como astro principal (adivinhem) Antonio Banderas.
AVISO
Antes de ler a crítica abaixo, lembre-se que eu faço SIM, SPOLIERS, e que, se você não assistiu ao filme ainda, é melhor pular a parte da "sinopse".
SINOPSE
O filme inteiro gira em torno de uma linha só: temos um cirurgião conceituado (Antônio Banderas), cuja filha ficou louca e morreu por causa de uma violência sexual. E temos Vera, uma mulher que permanece presa em um quarto, sob constante vigilância do médico, no casarão onde ele vive recluso, saindo apenas a trabalho. A casa tem uma governanta que ajuda o médico a vigiá-la.
É um típico filme do Almodovar: a situação inicialmente parece simples de entender, mas impossível de compreender (como aquela mulher foi parar ali, e por quê?). E vai ficando cada vez mais complicada à medida que vai sendo explicada.
Descobrimos que o médico é viúvo e que o agressor da filha dele era um cara chamado Vicente. Adiante, descobrimos que o médico na verdade capturou vicente, fez-lhe uma mudança de sexo e reconstruiu toda sua aparência (cabelo, corpo, voz, tudo), para ficar igual à sua falecida esposa.
A governanta é, secretamente, a verdadeira mãe do médico. Ela deu a ele, também, um meio-irmão bandido, que o médico acabará matando na inevitável cena do estupro (todo filme do Almodovar tem um estupro). Esse meio-irmão foi, no passado, o responsável pela morte da esposa do médico também. E por aí vai.
COMENTÁRIO SOBRE O ELENCO
Antonio Banderas é, de longe, o nome mais famoso em todo o elenco, e isso já era de se esperar. Só que... não sei. A atuação dele me pareceu um pouquinho canastrona no início do filme. As falas me pareceram meio mal boladas, e ele não convence como um médico cirurgião renomado, que acaba de inventar uma pele artificial transgênica. Parece mais um charlatão vendendo tônico numa cidadezinha do faroeste.
Também me deu a impressão de que Banderas estava passando por uma "síndrome de Steven Seagal", ficando com a mesma expressão no rosto do primeiro ao último minuto do filme. A "bruxa do 71" que cuida da casa também tem o mesmo problema.
A atriz que faz o personagem principal, Vera, me pareceu bem mais expressiva e convincente. E o cara que faz o "tigre", o bandido fugitivo, dá a impressão de que só fez filme de bangue-bangue até ser chamado por Almodovar. Ele é exgerado, artificial. Parece aqueles figurantes de filme do Rambo, cuja única cena consiste em levar um tiro e morrer, aos gritos. Algo assim. Sei lá.
Mas a personagem que mais importa nisso tudo é convincente. Então... tá bom.
O FILME
Este não é um filme de ação, e também não tem efeitos especiais computadorizados. Não vemos explosões, espadas de luz, nem nada do tipo. É um filme gostoso de assistir, hoje em dia, porque é uma das raras oportunidades que temos, de ver algum cinema feito com gente, cenários, e câmeras. E não muito mais que isso.
Não há momentos de ação explosiva na tela. O que vemos é um filme que tem um ritmo, um impacto. É um filme que queima, não por ser quente, mas por ser ácido. Não tem momentos entediantes, nem enrolação desnecessária. É um filme feito daquilo que é essencial: uma boa trama, uma narrativa bem construída, os personagens estritamente necessários para contar a história, e as doses de violência, sexo, emoção e horror necessárias para que seja um bom filme.
É um filme no qual nada falta, e nada sobra. Algo precioso, numa época em que filmes pecam, na maioria das vezes, pelo excesso. Hoje, raramente peca-se pelo minimalismo. Parem e observem.
UM POUCO DE AUTO-PLÁGIO
Para quem é "nego velho" em Almodóvar, este filme tem um certo gosto de repeteco. Embora pareça 100% original (e a história em si é), os elementos que compõem a ação na tela pegam MUITA coisa emprestada de outros filmes anteriores do mesmo diretor. Especialmente do semi-clássico "Kika".
Não entenderam o que quero dizer? Querem ver?
Em "A pele..", há um casarão com nome próprio, El Cigarral, no qual se passa boa parte da trama. Este casarão é alvo de uma certa cobiça. Igualzinho à velha Casa Youkali, de "Kika".
O antagonista é, mais uma vez, um homem rico, de meia-idade, mentalmente perturbado, cuja esposa se suicidou (embora em "Kika", no final, descubra-se que não foi suicídio). Temos como personagem principal uma mulher, com uma alta carga de apelo sexual, percebido tanto pelo público como pelo antagonista.
Em ambos os filmes temos um bandido que usa uma festa popular para se disfarçar e fugir da polícia (o "tigre" de "A pele que Habito" e o ator pornô de "Kika"), que depois procura abrigo junto a uma parente (mãe num filme, irmã no outro), e esta parente é serviçal na casa onde vive a personagem principal. Em ambos os filmes, essa serviçal é quem abre a porta da casa de seus patrões ao bandido.
Em seguida, por razões diferentes, este bandido amarra sua parente, e estupra a indefesa "heroína" do filme. Em ambos os filmes, o estupro termina incompleto, com o estuprador se dando mal: num filme, o cara morre, e no outro, é preso. Em ambos os casos, é pego ainda em cima da mulher. Sério. Aqui temos praticamente uma reutilização de personagem. Paul Bazzo, de "Kika", é simplesmente o mesmo personagem do "Tigre" de "A pele...". Ambos têm a mesma função nas duas tramas, e comportam-se de forma semelhante. Ambos são fortes, burros e ninfomaníacos. E ambos são alvo de uma afeição incondicional da mãe/irmã, que não avalia a enorme gravidade dos seus crimes.
Tem também aquela cena na qual o Banderas praticamente "come" a menina observando ela pela tela do monitor, e que se parece muito com a cena do diretor, se deliciando com a imagem de sua atriz/musa, em "Atame!", um clássico de 1990 do mesmo diretor.
EVOLUÇÃO
Falando na obra de Almodovar, e já que mencionamos aqui seu inesquecível (embora um pouco manjadinho) "Kika", vale a pena falar sobre a evolução clara e visível do diretor: "A pele que habito" é um filme bem mais curto que alguns títulos anteriores do mesmo autor, mas é bem mais completo. Tem maior capacidade de prender a atenção do espectador. As situações, embora tudo aqui seja muito mais "ficção científica" do que o habitual, são bem mais verossímeis. E os personagens são mais aprofundados.
Almodovar é um cara que realmente evoluiu muito dos primeiros filmes para cá. O final deste filme é incrível, porque não é um final: quando Vera entra no brechó da mãe, reencontra a irmã, e diz a última frase do filme, "eu sou o Vicente...", a gente sente um grande alívio: até o último segundo, fica-se pensando que ela/ele desistirá de contar à mãe, e cairá fora da loja correndo.
Mas tem mais: depois que vem o alívio no final, e sobem os créditos, a gente respira uns segundos e vêm as questões que fazem deste um "final que não é final": o que acontecerá agora? Vicente viverá como Vera para sempre? Vai virar mulher de vez e viver como uma, ou vai viver como uma lésbica? Sim, porque... será que, a despeito de seu corpo, sua mente ainda é masculina? Ou ele vai aceitar de vez sua nova forma? Como vai ser essa relação com a mãe e a irmã de agora em diante? É um final aberto, mas é um grande final. Perfeito para o clima deste filme.
AVALIAÇÃO FINAL
Minha avaliação final é um RECOMENDO bem convicto. Este filme não é cansativo, é interessante e é bem feito. Do tipo que o sujeito, mesmo que esteja com sono, esquece de adormecer ou de se distrair (até de ir ao banheiro), porque prende os olhos na tela. Não é um filme espetacular, mas é um grande filme.
O grande caso é que este filme é um BAITA filme, mas não o será para todo mundo. A multidão que chora vendo "Titanic" e dá gargalhadas vendo "Deu a louca em Hollywood" não vai, talvez, nem entender. Mas para quem tiver dois ou três neurônios, já passa a ser um filme recomendável.