Era um garoto...
A história de Fábio Burch Salvador.
Uma autobiografia semi-autorizada… (os outros personagens entraram nessa de gaiatos).
Eu nasci há 10 mil anos atrás...
… brincadeira.
Eu nasci, na verdade, em 1981.
Para ser mais preciso foi em uma sexta-feira, 23 de Outubro de 1981, às 3 da madrugada.
A data em que eu vim ao mundo pode parecer um dia perfeitamente ordinário na história do mundo mas, para mim, ele sempre guardou algumas conexões assombrosas.
Eu faço aniversário exatamente no mesmo dia que o meu avô materno.
Eu nunca o conheci, porque ele morreu com apenas 33 anos de idade. Por conta desta coincidência, passei boa parte da vida ouvindo piadinhas sobre reencarnação.
Não sou espírita, não creio em múltiplas vidas mas, ainda assim, confesso que fiquei muito aliviado quando comemorei meu 34º aniversário.
1981 foi uma ótima “escolha” como ano de nascimento…
Em fevereiro, o Iron Maiden lançou “Killers” e em julho os Ramones lançaram “Pleasant Dreams”.
Esses dois discos, todo mundo sabe, estão recheados de clássicos.


“Killers” é uma obra notável pelo fato de simplesmente não ter filler nenhum: todas as músicas são memoráveis.
Já “Pleasant Dreams” marca a passagem dos nossos punks novaiorquinos de uma fase mais crua para discos mais bem produzidos. Embora tenha algumas canções esquecíveis, ele traz alguns dos hinos mais lembrados da banda.
Também foi naquele ano que a Nintendo lançou Donkey Kong nos fliperamas. O jogo seria, por muito tempo, o campeão mundial de faturamento e daria à empresa o capital necessário para que ela redefinisse o mercado dos videogames poucos anos depois.

Por fim, em 1º de Agosto a MTV estreou nos Estados Unidos.
Sim, eu sei que a MTV hoje é mais conhecida como um canal de reality shows bem porcaria mas ela nem sempre foi assim. Nos anos 80 e 90 ela era realmente a “Music Television”, um canal que passava videoclipes o tempo todo. Era onde conhecíamos novas bandas e víamos os rostos dos nossos heróis do rock. Pensando bem, esta proposta inicial não faria mais sentido hoje porque agora nós temos o Youtube.
Enfim… o primeiro vídeo – a primeira coisa que apareceu – o big bang da MTV foi, muito apropriadamente aliás, o o clipe de “Video Killed the Radio Star”.
Em 1981 a gradual abertura do regime militar estava ganhando velocidade e isso tinha reflexos inclusive no mundo da arte, com um visível afrouxamento da censura.
Em meio ao crescente clima de “oba oba” tivemos o lançamento de “Coisas Eróticas“, o primeiro filme com cenas de sexo explícito a chegar às salas de cinema do Brasil.

Sabem o que eu acho realmente curioso?
Pesquisei, procurei e não encontrei nenhum acontecimento ou cataclismo digno de nota no exato dia em que eu vim ao mundo. Nem mesmo o nascimento ou morte de alguma celebridade ou personagem histórico.
Talvez um dia as pessoas pensem “ah, 23 de outubro de 1981? Não é o dia em que aquele tal de Fábio nasceu?“
Imaginem que legal!
Nunca se sabe…
Meu sangue latino...
Meus pais são pessoas com origens culturais bastante diferentes.
O fato de terem se encontrado e se apaixonado é uma completa aleatoriedade.
Eu e minha irmã somos ocorrências improváveis no jogo matemático do Universo.
Meu pai vem de uma família de imigrantes italianos chegados ao Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX.
Meu avô – o pai do meu pai – foi o primeiro membro do clã Salvador a nascer no Brasil, lá por 1915.
Minha avó, pertencente à muito mais numerosa família Cenci, nasceu em 1920.
Na juventude, os dois chegaram a sair da colônia e mudaram-se para uma cidade maior mas, por conta de reviravoltas que contarei mais adiante, acabaram retornando para o enclave italiano de onde haviam saído. E lá viveram, naquele espaço cultural e geograficamente isolado, no meio da Serra Gaúcha.
O pequeno Luiz Antonio cresceu como um pequeno “colono raiz” e chegou à escola sem sequer saber falar português. Sua língua nativa original é o talian, um dialeto originário do Vêneto.
O talian é uma língua complicada, evoluída do latim por um caminho diferente do italiano mainstream. Ele é bem mais próximo do francês e do espanhol do que da língua oficial falada na terra-mãe hoje em dia.

Apesar de todas as peculiaridades do talian, uma vez um tio meu viajou para a Itália e descobriu que as pessoas conseguiam entendê-lo. O engraçado é que elas o viam como uma espécie de “museu vivo”, por ser falante de um dialeto quase morto por lá.
O talian no Brasil esteve em vias de desaparecer até que algumas prefeituras (notadamente a de Serafina Correa) começaram a montar acervos e tomar medidas para preservá-lo, ensiná-lo nas escolas, etc.
Embora tenha sido visto, por muito tempo, como uma língua “atrasada”, “de gente grossa”, este idioma é um legado cultural único, importantíssimo e ligado a histórias de coragem e trabalho que merecem ser preservadas para sempre.

Minha família paterna não era, no entanto, composta unicamente de italianos. Sabe-se que uma das minhas bisavós era austríaca apesar de falar a mesma língua do marido.
É bem provável que ela fosse originária de alguma parte do Império Austro-Húngaro nas quais se falava italiano como um segundo (em alguns lares, primeiro) idioma. Essas áreas seriam, depois, anexadas pela Itália ao final da Primeira Guerra Mundial.
Eu não tenho fotos dos meus bisavós e não tenho fotos da família do meu pai nos tempos de colônia. Acho que ninguém tinha câmera fotográfica naquele lugar e naquela época e, mesmo que algum fotógrafo “lambe-lambe” itinerante tenha passado por lá, os Salvador eram provavelmente pobres demais para pagarem por um retrato.
O epicentro de expansão deste lado austro-italiano da minha família foi um povoado que hoje é a cidade de Cotiporã. A velha casa da minha avó continua de, a uns 800 metros do atual centro.

Em contraste com os gringos serranos, a família da minha mãe tem uma configuração bem mais miscigenada e tipicamente brasileira.
Vamos começar pela origem da minha vovó Maísa, mãe da minha mãe.
Aqui, temos uma história realmente, complexa, curiosa e entrelaçada com a história do próprio Brasil.
Primeiro porque, contrariando os estereótipos atuais sobre o Sul e o Nordeste, esse lado da parentela é aquele no qual eu encontro os meus antepassados mais abastados, esclarecidos e letrados.
Eles são basicamente um bando de portugueses e de descendentes de lusitanos bem sucedidos.
A trajetória toda é muito bem documentada e foi inclusive compilada em um livro por uns primos da minha avó.

O tal livrinho verde da família começa assim:
“Quem veio de Portugal foi Francisco Xavier Camelo, e Xavier aliás nem era um sobrenome natural, mas atribuído por seus pais já que ele nasceu no dia de São Francisco Xavier.”
Chegando ao Brasil, Francisco estabeleceu-se na Paraíba, território que fazia parte da Capitania de Pernambuco (a separação só ocorreria em 1846). Mais especificamente, ele chegou à vila de Pilar.
Espraiando-se pela região, ele logo casou-se com uma mulher chamada Felisbela Pessoa de Albuquerque.
Os Albuquerque eram já importantes àquela altura e a união fortaleceu ainda mais “boa estirpe” do imigrante, que “sem demora passou a figurar entre os homens de alto conceito, tanto por sua sisudez como pelo elevado grau de instrução“.
O epicentro do poder dos Albuquerque não era, no entanto, a vila de Pilar e sim uma outra povoação um pouco maior e mais importante, na qual o português e sua esposa assentaram-se de vez e criaram seus diversos filhos: um lugar chamado Areia.

A numerosa prole de Francisco e Felisbela casou-se toda dentro de um caldeirão de sobrenomes bem relacionados na metade leste paraibana, com ramificações chegando até João Pessoa.
Não por acaso, o clã era um celeiro de figurões importantes.
O filho mais velho do casal, João Aureliano, deu-lhes um neto chamado Otacílio Camelo de Albuquerque que foi prefeito de Areia entre 1904 e 1908, prefeito de João Pessoa entre 1908 e 1911, deputado estadual até 1915, e federal desde então até 1927, além de ter ocupado uma vaga no Senado entre 1923 e 1924.

A figura que nos interessa aqui, entretanto, é uma das filhas do casal Francisco e Felisbela – irmã de João Aureliano e tia do famoso Otacílio. Ela chamava-se Débora e casou-se com um sujeito chamado Anísio Borges Monteiro de Melo.
Esses dois – como você já deve adivinhado – são os meus tataravós.
Acontece que Anísio também vinha de uma família influente.
Anísio perdera o pai muito cedo e fora criado por um tio, que foi inclusive padrinho do casório, e que chamava-se Luis Vicente Borges.
Luis Vicente é um bom exemplo da estirpe da família Borges: ele havia sido deputado provincial na primeira década depois da Independência do Brasil e foi um dos líderes da facção liberal paraibana na época da Revolução Praieira de 1848.

Anísio teve, ele também, uma vida notória. Não sei direito o que ele fazia da vida mas hoje, ele dá nome a uma rua em João Pessoa.
Antes de virar nome de rua, ele e a esposa tiveram – claro – sua própria ninhada de filhos sendo que só um deles interessa para a nossa narrativa: Anésio, meu bisavô.
Vocês devem estar agora imaginando que, vindo de uma linhagem tão ilustre, eu devo ter me beneficiado com a influência, o poder e as conexões da família, né? Pois bem… estão errados. Eu não vi a cor de nada disso.
Sabem por que?
Porque Anesinho era a ovelha negra da família.
Ele simplesmente fugiu de casa e entrou de gaiato num navio.
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias...
Conta-se que, aos 17 anos, Anésio fugiu do conforto da casa dos pais, abrindo mão do papel social que lhe cabia como membro do clã dos Borges-Albuquerque-Xavier-sei-lá-mais-o-que…
Fugiu e lançou-se ao mar, como um pirata do sertão.
(tá, eu sei que Areia não fica exatamente no sertão mas a frase acima ficou fantástica)

O fujão conseguiu esconder-se em meio à carga de um navio (em circunstâncias que se perderam no tempo) e só foi encontrado dias depois pelos marinheiros.
Anésio tinha apenas 17 anos, era “de menor” e deveria ser devolvido a seus pais mas os marujos resolveram ajudá-lo e arranjaram-lhe uma certidão de nascimento que dava-lhe um ano a mais de idade.
De posse do documento frio ele conseguiu então trabalhar embarcado e algum tempo depois alistou-se na Marinha.
Embora tenha crescido em uma família de bacharéis e de ilustres, meu bisavô largou a escola quando fugiu de casa. A falta de estudo o impediu de ascender ao alto oficialato mas ele, ainda assim, conseguiu chegar a capitão-de-fragata.

Minha avó Maísa nos contava sobre as vezes em que foi ao “escritório” do pai… que não era um escritório e sim um porto. Ela lembrava de ter visto o desembarque de soldados da Força Expedicionária Brasileira.
Por conta do caráter itinerante dos postos militares, a família um dia veio parar no Sul.
Aqui, tanto vovó como meu tio-avô Anésio Filho acabaram casando-se e dando origem ao ramo gaúcho da família.
Eu nunca tive muito contato com meu bisavô porque, depois de ver os filhos saindo de casa, o velho marinheiro partiu para outras aventuras e acabou no Rio de Janeiro, onde aposentou-se. Morreu por lá, aos cem anos de idade, em 1998.

Paralela à história do meu bisavô marujo nós temos a história da esposa dele, ou seja, da minha bisavó, que eu nunca conheci e que parece ter sido tragada por uma trama digna do roteiro de uma novela mexicana.
Esta, no entanto, eu só conheço através de boatos.
Nós sabemos com certeza que, em algum momento, ela e o marido separaram-se. Minha avó contava que a dona Dilma (sim, minha bisavó chamava-se Dilma) reuniu os quatro filhos ainda pequenos, recomendou-lhes que se comportassem, deu um beijo em cada um e foi embora.
Nunca mais mandou notícias.
Por que ela fez isso?
Bem… em uma versão da história, porque ela teria fugido com um amante; em outra versão, seria para escapar do ciúme doentio e violento do marido.
A verdade? Talvez nunca saibamos. A última testemunha viva desta tragédia grega é uma tia-avó minha que parece não lembrar mais de muita coisa.
No final, existe ainda um boato que circula na família: meu tio-avô teria reencontrado a mãe no final da vida dela, descobrindo-a como dona de um bordel no Rio.
Uma cena digna de um conto de Nelson Rodrigues.
Chega a tocar na minha cabeça aquela vinheta: “pãããã… pãããã-pã-pã-pã….”, aí entra a voz do José Wilker: “a vida como ela é…“
Muito bem. Nós já vimos a saga dos Cenci e dos Salvador cruzando o Atlântico para reiniciar a vida longe da Itália e já vimos a luminosa história dos Borges Melo-Albuquerque blá-blá-blá.
Resta agora saber de onde veio o homem com o qual minha avó Maísa e casou: o pai da minha mãe. O Burch do meu sobrenome.
Aqui, finalmente, nós sairemos um pouco da pintura monocromática formada por europeus imigrados. Meu avô materno é o resultado da união entre um homem branco e uma mulher indígena.
Nós somos caboclos, mestiços (ou, como chamavam os antigos manuais de “ciência racial”, mamelucos).

O sobrenome Burch tem, visivelmente, tem suas origens no Velho Mundo. Eu fiz uma rápida pesquisa e descobri que ele é bem comum na região da Alsácia-Lorena, na fronteira entre a França e a Alemanha.
Na dúvida, mamãe prefere ser francesa.
Então é isso: meu avô era metade francês e metade índio.

Ao contrário do que fazem alguns brasileiros vira-latas, supremacistas e “metidos a europeus”, a minha mãe jamais renegou sua origens indígenas. Ela na verdade as ostenta com enorme orgulho.
Acredito que este orgulho tenha permeado gerações da família Burch: segundo mamãe, só o meu avô, chamado João, ganhou um nome “branco”. Todos os irmãos e irmãs dele, meus tios-avós, têm nomes “de índio”.
É um orgulho justificado.
Nós, afinal de contas, descendemos dos pampeanos, o povo que inventou a bebida sagrada dos gaúchos, o chimarrão.

Os Burch são uma família pouco numerosa no Brasil.
Seu epicentro de distribuição parece ser mesmo a cidade de Jaguarão, onde nasceram minha mãe e minhas tias. Pesquisando o sobrenome, encontrei advogados, médicos, um monte de gente com esse mesmo sobrenome ali por aquelas redondezas.
Jaguarão fica no extremo Sul do Rio Grande do Sul, separada do Uruguai apenas pelo rio que deu nome ao município. Hoje, claro, dá para cruzar a fronteira de carro através de uma belíssima ponte.

Eu imagino que a chegada dos Burch e sua integração racial e cultural tenham ocorrido em algum ponto bastante remoto do passado.
Qualquer que fosse a cultura praticada pelos imigrantes originais, ela deu lugar aos modos locais.
O ambiente no qual a minha mãe nasceu foi o típico meio rural sulista, no qual as pessoas falavam o linguajar gaudério e viviam o dia a dia do típico gaúcho celebrado pelo tradicionalismo regional.

Marvin, agora é só você...
As histórias das famílias dos meus pais parecem indicar um início de vida confortável para ambos.
Ledo engano: uma série de infortúnios varreu as conquistas das gerações anteriores.
Era preciso recomeçar, construir tudo outra vez.
Meu avô materno era fazendeiro. Criava ovelhas. Devia ser bastante próspero pois a casa da família era uma das poucas que tinha telefone em Jaguarão naquela época. Ele, no entanto, morreu com apenas 33 anos de idade.
Vovó, embora vinda de uma família de letrados, não entendia absolutamente nada sobre negócios e acabou perdendo quase tudo, indo reiniciar a vida com grandes dificuldades em Porto Alegre.
Ali, mamãe cresceu como uma criança de classe média baixa. E quando digo “baixa”, estou dizendo “baixa” mesmo: minha avó costumava policiar com mão de ferro até mesmo a quantidade de margarina que cada um colocava no pão.

Vovó eventualmente encontrou um novo amor, um professor de Educação Física dez anos mais jovem e tão pobretão quanto ela.
Curiosamente, este meu “avô postiço” tinha o mesmo nome do original, João. Lá em casa, todo mundo o chamava simplesmente de Valiati, seu sobrenome.
Meu pai tem uma história paralela e um pouco mais novelesca.
Ainda jovem, meu avô Ângelo e minha avó Antonieta estabeleceram-se em Soledade-RS onde ele, em uma certa altura, estava ganhando bastante dinheiro à frente de uma empresa de transporte de madeira.
Um dia, seu sócio saiu com uma carga cheia e simplesmente desapareceu, sumiu, como se tivesse evaporado. Dado como oficialmente morto, o sujeito havia na verdade deixado a família para iniciar uma vida nova em algum país vizinho. Mas isso só seria descoberto décadas depois.
Sem o caminhão, a firma faliu e eles – Ângelo, Antonieta e filharada – voltaram para Cotiporã. Com o pouco que ainda tinham, compraram 9 hectares e meio de terra e passaram a viver como agricultores pobres. Cultivavam principalmente cítricos e uvas, e produziam vinho barato.

Na colônia, os meninos Salvador caçavam passarinhos e tatus, não por diversão ou crueldade mas porque esses animais compunham a dieta da família.
Ainda criança, percebendo que havia um canto desocupado na propriedade, meu pai começou a cultivar batatas, sonhando em um dia comprar uma bicicleta (spoiler: ele não conseguiu).

Cotiporã hoje é uma cidadezinha adorável, próspera e totalmente conectada à internet mas, na época, era um povoado isolado, bravio, sem água encanada e sem acesso à eletricidade.
Era como viver no século XIX, mas sem o charme de usar cartola.
O atraso do lugar chegava a ser cômico.

Meu pai tem uma história engraçadíssima sobre a primeira vez que ele e os irmãos, já grandes, viram de perto uma garrafa de refrigerante, tentaram abri-la e ela “explodiu”.
Outra lembrança hilária dele é sobre a televisão: havia apenas dois aparelhos na cidade, ambos instalados em bares, que eram ligados a baterias de caminhões no horário do Ringue Doze (um programa de luta livre) para o divertimento dos aldeões.
Alguns, ainda não acostumados com a novidade, tentavam ajudar os mocinhos dando chineladas na TV quando os vilões estavam ganhando.

Papai adorava o Ringue 12 e torcia sempre para o Scaramouche, um lutador que dava saltos mortais e usava golpes acrobáticos inacreditáveis. O curioso é que, muitos anos depois, eu seria amigo do Scaramouche no Facebook. Tenho um livro dele, autografado e com dedicatória, na minha estante.
Meu pai começou a trabalhar muito cedo, na roça. Ainda na adolescência, ele conseguiu vaga em um curso técnico de Contabilidade e, aos 16 ou 17 anos, migrou do interior para Porto Alegre. Na capital, morou em quartos de pensão ali pela avenida Voluntários da Pátria, bem no meio da zona do meretrício.
Recrutado para o serviço militar, logo pediu dispensa. Questionado por um oficial, sua explicação foi curta e grossa: “eu sou muito pobre, preciso pegar um serviço rentável e começar logo a fazer dinheiro“.
Na metade dos anos 70, o ex-menino-colono já havia dado largos passos na vida, formando-se em Administração na FAPA.

Minha mãe também assinou a carteira de trabalho cedo, inicialmente no comércio. Um dos lugares onde ela trabalhou foram as Lojas Igor, que ainda hoje existem ali no começo da avenida Protásio Alves.
Meus pais têm naturezas bastante diferentes em certos aspectos. Na juventude, meu pai era namorador (ou pelo menos tentava ser) e festeiro enquanto minha mãe era mais quieta e gostava ficar no canto dela, ouvindo seus discos favoritos.
Ainda assim, em algum ponto nos anos 70 os dois se conheceram e começaram a namorar.
Em 1979, finalmente casaram.

Quando eu nasci, mamãe estava cursando Educação Física no IPA.
Ela acabaria se formando em 1983, já grávida da minha irmã.
Nossa velha infância
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Apesar de terem personalidades e origens culturais muito diferentes, meus pais sempre tiveram algumas características cruciais em comum. Duas delas são o fato de serem ambos tremendamente trabalhadores e o fato de serem criteriosamente econômicos.
Quando eu nasci, eles moravam no Partenon.
Uns dois anos depois, mudamos para o limite entre os bairros Santana e Bom Fim, a exatamente uma quadra e meia do Parque da Redenção.

Esta troca de uma área popular por um bairro mais abastado foi um “peitaço”, uma loucura.
Meus pais só conseguiram comprar o apartamento porque ele estava em péssimo estado e eles mesmos, depois, fizeram reparos para torná-lo habitável.
Aquilo foi uma ousadia, mas não foi a primeira e nem seria a última nas vidas deles.
Em 1983 eu ganhei uma irmãzinha. Ela chama-se Ângela mas é mais comumente conhecida como Kika.
Professora Kika, para ser mais exato.
Como temos praticamente a mesma idade (a diferença não chega a um ano e meio), nós crescemos brincando juntos e até hoje formamos uma “dupla do terror”, compartilhando sonhos e indignações, debochando de tudo e todos, sempre que nos encontramos.

Eu falei bastante sobre a curteza de grana que reinava na nossa casa na época – minha mãe precisou vender as poucas jóias que tinha para comprar camas para nós – mas o fato é que apesar disso nossas infâncias foram muito boas.
Naqueles tempos era mais fácil ser feliz. As crianças não eram bombardeadas com imagens de vidas perfeitas e com toda essa ostentação que caracteriza as redes sociais.
Acho que as pessoas em geral eram bem menos consumistas e neuróticas do que hoje.
Minha mãe dedicava todo o tempo dela e uma quantidade incrível de energia para nos fazer felizes. Ela nos levava ao Parque da Redenção, às pracinhas e inventava brincadeiras no pátio do prédio.
Meu pai passava os dias da semana no trabalho mas também brincava muito conosco nos finais de tarde e nos finais de semana.


Eu devo minha boa saúde, até hoje, à minha mãe.
A dedicação dela com relação à comida era extraordinária. Lembro que comíamos muito feijão e muito espinafre. Era uma dieta tão rica em ferro que eu nem sei como meu esqueleto não ficou igual ao do Wolverine.
Além disso, a maior parte das brincadeiras que ela inventava eram, na verdade, atividades físicas.

Outra influência importante e duradoura da matriarca da família foi a formação cultural que ela passou para nós, fazendo um contrabalanço interessante aos valores que vinham da família do meu pai.
Consumidora inveterada de chimarrão, nascida na fronteira e acostumada aos modos gaudérios, coube a ela fazer de nós verdadeiros gauchinhos.
Gauchinhos de Setembro, que voltavam a ser piás urbanos assim que as festas farroupilhas acabavam mas, ainda assim, gaúchos de corpo e alma.

Mamãe teve também uma importância crucial na nossa formação humanística.
Com ela, aprendemos que uma pessoa que tem tudo mas é arrogante não tem, na verdade, é nada.
A vida às vezes nos dá superpoderes – força, dinheiro, inteligência. Utilizá-los de forma egoísta ou para pisar nos outros é desperdício. O verdadeiro sentido dessas coisas é que elas nos permitem ajudar aos outros, levar alegria ao mundo.
A verdadeira grandeza está em tornar o mundo um lugar melhor.
Acho que os papos nesta direção surgiam naturalmente porque nós éramos crianças mais altas e mais fortes do que a maioria dos nossos amiguinhos e ela não queria que fôssemos valentões.
Meu pai sempre foi um sujeito com muitos interesses curiosos, que ele perseguia pela pura paixão de fazer as coisas.
Embora algumas dessas fissuras tenham sido passageiras, algumas parecem acompanhá-lo pela vida toda. Uma delas é a paixão que ele tem por coisas eletrônicas, por tecnologia e por um certo tipo de estética futurista.
Acho que meu pai assistiu Jornada nas Estrelas demais quando era jovem. De fato, às vezes eu tenho a impressão de que esta foi a única série que ele realmente acompanhou do começo ao fim em toda a sua vida. Quase todas as citações ficcionais do homem são, de alguma forma, ligadas a Kirk e Spock.
Papai sempre foi, a seu modo, um pouco geek.

Além da obsessão por tecnologia ele também treinou artes marciais por algum tempo e, em diversas ocasiões, tentou aprender a tocar instrumentos musicais.
Essas brincadeiras às vezes geravam resultados práticos: o lance da tecnologia, por exemplo, o mergulhou no mundo dos computadores e o levou a aprender programação, ainda no meio dos anos 80.
A maior parte daquelas maluquices, no entanto, não dava em nada. Ainda assim, elas tornavam a vida muito mais interessante e divertida para ele e para nós.

Eu e minha irmã tivemos muitos brinquedos.
Nossos pais nos davam o máximo que podiam e nós éramos constantemente mimados pela nossa “tia rica” Suzana, que nunca teve filhos e da qual nós éramos os únicos sobrinhos na época.
Nosso quarto (nós dividíamos o mesmo quarto) serviria muito bem para ilustrar um desses almanaques saudosistas sobre os anos 80.

Eu tive um Ferrorama, a coleção quase completa dos bonecos dos Thundercats e também muitos dos personagens do He-Man.
Minha irmã tinha bonecas Barbie e teve até um Pogobol (que era uma invenção do demônio, servia mais para machucar as canelas do que para pular).
E nós tivemos bicicletas – algumas delas, compradas no brique mas tão caprichosamente limpas, pintadas e customizadas pelos nossos pais que nós nem notávamos. Em alguns casos, elas ficavam mais legais do que as compradas novas.
E nós tivemos, claro, um Atari.

A compra do Atari, aliás, teve a ver com a já citada mania do meu pai por tecnologia. Por conta dela, nós tivemos acesso a várias outras novidades que estavam surgindo na época.
Uma vez, ele entrou em um consórcio – veja bem, um consórcio! – que o levou a ser o segundo ou terceiro dono de um videocassete em Porto Alegre!
Eu e a Kika usávamos o aparelho para gravar os desenhos animados da televisão, que assistíamos à noite denovo e denovo, como as crianças hoje fazem no Youtube com seus vídeos favoritos.

De modo geral, meu pai parece ter herdado do meu avô uma predisposição natural para saber construir e arrumar coisas.
Uma vez, ele abriu um controle de Atari estragado, cortou a placa dele em pedaços e interligou-as com fios, presos com estanho. Depois, montou um suporte de madeira, colocou os contatos embaixo de dois pedais e ligou os sensores do direcional a um volante velho de fusca. Nós jogamos Enduro dirigindo “de verdade” até aquela geringonça se desmontar.
Outra obra notável de engenharia caseira MacGyveriana foi a nossa casinha de pátio.
Diante do alto custo de uma casinha comprada, papai e mamãe simplesmente construíram uma para nós com caibros de madeira e placas de compensado. No fim, ela ficou até maior e mais alta do que as que estavam à venda nas lojas e nos serviu de “esconderijo secreto” por muito tempo.
Nossa rotina “cultural” era também tipicamente oitentista: nós crescemos vendo programas como o da Xuxa e do Bozo. Eu adorava o Sérgio Mallandro e por isso sou fã dele – acredito que em grande medida por pura memória afetiva – até os dias de hoje.
A Xuxa, aliás, é um caso engraçado: lembro que nós adorávamos as músicas dela e das paquitas, e assistíamos ao programa por causa dos desenhos. A apresentadora em si, com suas gincanas e suas frases emotivo-motivacionais, nunca foi a atração principal.

Em uma fase mais avançada dos anos 80, meu interesse começou a deslocar-se mais para a Rede Manchete, uma emissora “fora da curva” que apostava em fórmulas arriscadas de programação.
Em uma dessas maluquices, seus executivos resolveram dar ouvidos à Saban, uma empresa que tentava lançar por aqui as séries de heróis vindas do Japão.
Nelas, personagens imortais como o Jaspion, os Changeman e o ninja Jiraya enfrentavam, todas as semanas, alienígenas e demônios em meio a um monte de efeitos especiais de baixíssimo orçamento.
Aquilo era fascinante.



Um artista visto como “cantor de música para adultos” mas que fazia nossa cabeça era o Raul Seixas.
Eu não sei bem como as músicas dele começaram a circular lá em casa – talvez tenha sido por obra da minha mãe – mas lembro que nós adorávamos as doideiras psicodélicas do “Maluco Beleza”, que vivia então os últimos anos de sua conturbada vida.